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Transversalidade das políticas culturais: O clone rebelde


Esta foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY-NC-ND


Na dimensão da Constituição Cultural, as palavras e expressões colocadas nos doze incisos do Art. 216-A da Constituição foram chamadas de princípios, mas poucas delas efetivamente constituem esse tipo de norma jurídica, caracterizada por ser abstrata e por veicular valores e não comandos precisos relativos a proibições, permissões ou obrigações. Reger as relações apenas ou até mesmo preponderantemente por princípios, portanto, é algo que escancara portas ao arbítrio, pois deixa a última palavra do que eles significam com o detentor do poder de interpretá-los e/ou aplicá-los.


Assim, foi sorte, ao chamar de princípios prescrições que efetivamente são metas (“universalização do acesso”), estratégias (“cooperação entre os entes federados”), metodologias (“descentralização articulada e pactuada”) e regras mesmo (“ampliação progressiva de recursos”), que os redatores da Emenda Constitucional nº 71/2012, sem querer, deram instrumentos para um melhor controle jurídico do clone normativo extraído do Sistema Único de Saúde – SUS, para, com suas “células”, fazer o Sistema Nacional de Cultura – SNC.


Por sorte também, o processo “de inspiração” propiciado pelo sistema da saúde não deixou o sistema cultural de todo desprovido de princípios, sendo o mais evidente deles o “transversalidade das políticas culturais”, cujo significado não foi encontrado na tramitação da Proposta de Emenda Constitucional – PEC que acresceu o SNC à Constituição. No âmbito do SUS, todavia, encontra-se uma definição de transversalidade na cartilha intitulada “Política Nacional de Humanização – PNH (1)”, nos seguintes termos:


Transversalidade. A Política Nacional de Humanização deve se fazer presente e estar inserida em todas as políticas e programas do SUS. A PNH busca transformar as relações de trabalho a partir da ampliação do grau de contato e da comunicação entre as pessoas e grupos, tirando-os do isolamento e das relações de poder hierarquizadas. Transversalizar é reconhecer que as diferentes especialidades e práticas de saúde podem conversar com a experiência daquele que é assistido. Juntos, esses saberes podem produzir saúde de forma mais corresponsável.


Note-se que a ideia de transversalidade no SUS é, em termos retóricos, modesta, e em termos de governabilidade, operacional, por ser interna ao próprio sistema, uma vez que envolve apenas “as políticas e programas” e “as diferentes especialidades e práticas de saúde”.


No mesmo sentido, relativamente ao setor da Educação, “no âmbito dos PCNs [Parâmetros Curriculares Nacionais], a transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa, uma relação entre aprender conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real e de sua transformação (aprender na realidade e da realidade)”. Isso implica em “trazer para os conteúdos e para a metodologia da área a perspectiva” de temas como “Ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo e Pluralidade Cultural” (2).


Neste aspecto, o SNC aparenta libertar-se do seu paradigma criador, o SUS, e de distanciar-se do seu coirmão, o sistema educacional, para seguir sua natureza de grandiloquência. Tal constatação emana do “Texto-Base da [Segunda] Conferência Nacional de Cultura” (3), precisamente de seu tópico “3.1. Centralidade e Transversalidade da Cultura”, do qual se extrai que:


Para enfrentar esses novos desafios, as políticas culturais precisam sair da posição periférica em que se encontram para colocar-se no cerne das políticas governamentais. Além de uma base conceitual e institucional mais sólida, têm de relacionar-se estrategicamente com outras políticas.


As interfaces com a Educação e a Comunicação são hoje prioritárias (ver 1.3. e 1.4.), mas outras conexões também são necessárias. A Cultura deve relacionar-se com as políticas de Ciência e Tecnologia e reforçar a premissa de que o desenvolvimento científico tem de incorporar a diversidade cultural do país, com seus múltiplos conhecimentos e técnicas.

Também é vital articular-se com os programas de inclusão digital, pois os novos aparatos tecnológicos de transferência e armazenamento de informações influenciam as dinâmicas de expressão, fruição e consumo cultural. A convergência digital pode ser o ambiente futuro de circulação da cultura, mas para isso é necessário que as tecnologias de informação e comunicação sejam descentralizadas e democratizadas.


A Cultura pode contribuir também com as políticas de Saúde, seja na criação de ambientes lúdicos para o tratamento e socialização de doentes, seja no desenvolvimento de terapias baseadas nas artes (música, dança, artes visuais e outras), adequadas à cura de sofrimentos mentais. Da mesma forma, a Cultura pode integrar-se com a Segurança Pública e contribuir para a redução da violência, pois maneja símbolos capazes de encantar, humanizar e reconstituir possibilidades de vida.


Para que as coisas assim acontecessem, opções teriam que ser feitas: as políticas de cultura deveriam ser encetadas por um superministério (o nosso foi extinto!), que além dos seus deveres internos, tivesse estrutura para as múltiplas conexões almejadas; ou: as políticas de cultura serem difundidas nas múltiplas estruturas ministeriais; ou: outras soluções compreendedoras de que a implantação de uma norma (no caso principiológica) pode exigir gradações e progressões, conforme a realidade enfrentada, sob pena de contínua ineficácia e, pior, de ser submetida a um processo de ridicularização quixotesca.


O fato é que essas breves reflexões sobre a transversalidade indicam que o campo cultural precisa de personagens, processos e produtos próprios, características que, na origem, a clonagem, enquanto concretização científica, possuía; todavia, hoje não passa de uma técnica que permanece adequada à reprodução, mas não à construção de identidade, autonomia e criatividade.

Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).

1.https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf 2. MENEZES, Ebenezer Takuno de. Verbete transversalidade. Dicionário Interativo da Educação Brasileira - EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2001. Disponível em <https://www.educabrasil.com.br/transversalidade/>. Acesso em 20 dez 2021. 3.https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Cultura_II/texto_base_2_conferencia_cultura.pdf

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