top of page
Foto do escritorBlog Opinião

Um Conselho para o patrimônio



No período em que comemoramos os 35 anos da Constituição Federal de 1988, se há algo, em termos de níveis de participação popular, que não nos deixará nenhuma saudade é a memória do governo Bolsonaro. Apesar de se apoiar na retórica populista e em uma narrativa pretensamente nacionalista que evoca a vontade do povo, a gestão bolsonarista, durante o seu mandato, extinguiu por decreto [1], ou seja, unilateralmente, vários Conselhos de políticas públicas na esfera federal, cuja previsão de assentos da sociedade civil garantia, pelo menos em forma, certo respeito constitucional à representatividade cidadã.


Esse último adjetivo qualificador da Constituição, desde o célebre discurso de Ulysses Guimarães na Assembleia Nacional Constituinte, orienta imperativamente os processos de tomada de decisão em múltiplas instâncias dos Poderes, seja direta ou indiretamente, conferindo maior legitimidade ao exercício do poder e ultrapassando o sufrágio periódico e universal das eleições para os principais cargos de agentes políticos de nossa democracia. Felizmente, essa iniciativa indiscriminada, mobilizada para combater um suposto “ativismo social” criticado e odiado por Bolsonaro, esbarrou no Supremo Tribunal Federal, que o lembrou que muitos Conselhos têm previsão legal, portanto, para serem extintos ou modificados, precisariam da chancela do parlamento [2].


No campo cultural, para além das práticas de assédio e desmonte institucionais estruturados durante seu governo, um dos principais Conselhos fora então afetado, apesar de sua posterior reabilitação: o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Embora ostente este nome desde sua fundação legal com o IPHAN, em 1937 [3], o órgão tem atuação tanto deliberativa quanto opinativa; assim também pode ter um papel tanto político quanto técnico [4] nas questões relacionadas ao patrimônio cultural brasileiro.


Pouco antes do seu aguardado fim, a gestão do IPHAN desse período trocou alguns dos membros da sociedade civil que pertenciam ao Conselho, quando se manifestaram contra a paralisia à qual o governo submetia processos decisórios importantes [5]. O Conselho do Patrimônio é responsável por deliberar sobre tombamentos e suas rerratificações, registro e revalidação de bens culturais imateriais, chancela da paisagem e saída temporária do país de bens acautelados pela União [6], dentre outras competências estabelecidas por normas legais e infralegais.


Durante o governo Bolsonaro, o Conselho do Patrimônio era composto por 23 membros. Seis representantes do Estado do âmbito federal, contando com o Presidente do IPHAN, que o preside; quatro partícipes de entidades que compõem a chamada representação técnica do Conselho; e treze membros da sociedade civil. Não obstante a numerosa e aparente participação popular, esse preenchimento se dava pela indicação da Presidência do IPHAN de profissionais de “notório saber e comprovada experiência nas áreas de atuação relacionadas ao patrimônio cultural” [7].


Além de se afastar dos desígnios da Constituição Federal de 1988 ao afirmar que o patrimônio cultural não é e nem pode ser assunto de especialistas e técnicos, pois está referenciado nos valores dos diversos grupos que integram a sociedade brasileira [8], esse tipo de composição repetia as antigas fórmulas dos Conselhos do campo cultural – muito embora ainda reproduzidas em democracia – nos quais a representação da sociedade civil era associada aos “cardeais da Cultura” como legítimos integrantes das elites intelectuais, na qualidade de intérpretes autorizados da cultura nacional [9]. Esse tipo de formato permite o troca-troca ao sabor do governo de ocasião, assim como ocorreu no governo Bolsonaro, não obstante a postura altiva de enfrentamento de muitos dos que o compuseram nessas condições à omissão governamental deliberada na formulação da política e das ações patrimoniais necessárias à preservação e salvaguarda dos bens culturais.


Vale lembrar que o imperativo constitucional de que “o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural [...]” [10] deve se refletir nos processos decisórios dessa área, assim como também na composição do Conselho responsável por tomadas de decisão fulcrais que acabam por orientar as políticas federais. O Sistema Nacional de Cultura, do qual o subsistema do patrimônio cultural faz parte, tem como um de seus princípios a “democratização dos processos decisórios com participação e controle social” [11].


A eleição de Lula para um terceiro mandato trouxe consigo a promessa de redemocratização desses espaços, principalmente na área cultural. Em agosto deste ano, o atual presidente editou decreto [12] que dispõe sobre o Conselho Consultivo, ratificando suas principais competências, mas também modificando a sua composição. Houve a sua ampliação para 30 membros.


Os representantes da administração pública federal, para além do Ministério da Educação, do Meio Ambiente (agora com a alteração “Meio Ambiente e Mudança do Clima”), do Turismo e do Instituto Brasileiro de Museus, que já compunham o Conselho, se ampliaram para nove integrantes, abrigando o Ministério das Cidades, da Igualdade Racial ,dos Povos Indígenas e da Fundação Cultural Palmares. O presidente do IPHAN continua a reger o órgão colegiado, pertencente a esta estrutura, possuindo o voto de qualidade, no caso de empate. As entidades técnico-profissionais se ampliaram para cinco membros, com a festejada inclusão da Associação Nacional de História – ANPUH.


Em relação à representação da sociedade civil, houve aumento dos assentos para 15 integrantes. O novo decreto abandona o critério do notável saber, mas mantém a necessidade do reconhecimento de atuação na área, porém com a expressa previsão de que os escolhidos não se resumem apenas aos profissionais do campo do patrimônio cultural (p. ex. arquitetos, restauradores, antropólogos, sociólogos, museólogos, juristas de direitos culturais e do patrimônio, historiadores, docentes, peritos, entre outros). Além dos técnicos mencionados, a nova composição inclui como representantes da sociedade civil, sujeitos historicamente subalternizados pela política patrimonial pedra e cal, como os detentores de bens culturais e as lideranças de povos e comunidades tradicionais. Embora extremamente positiva, essa inclusão e essa ampliação da sociedade civil no Conselho, seus membros dependem da indicação da Presidência do IPHAN com a respectiva designação da Ministra da Cultura.


Nesse sentido, a estrutura ainda pode refletir uma fragilidade da participação popular pelos setores culturais na esfera federal. Não só pelo fato de o Conselho ter previsão legal e ser definido e regido por um decreto, mas pela sinalização de que os governos mudam e, assim como eles, as nomeações de quem detém o poder de indicação. Isso pode tornar os órgãos colegiados corporativos ou sujeitos às animosidades políticas, com a instabilidade da mudança de sua composição a depender da orientação do gestor ou até da pauta a ser decidida. Certamente, retira a autonomia e a independência desejada da representação da sociedade civil.


Como a política patrimonial se trata de uma política cultural, vale lembrar também que, como uma das estratégias e ações do Estado para fortalecer e institucionalizar essas políticas públicas, consolidando sua execução, o Plano Nacional de Cultura (PNC) estabelece não apenas o objetivo para que os conselhos sejam paritários, mas que os membros da sociedade civil sejam eleitos [13].


Em democracia, o procedimento importa. São as regras do jogo que conferem legitimidade em maior ou menor grau a ele. Voltando ao PNC e à construção de mecanismos de participação, o advérbio de modo em item sobre a criação de Conselhos, na expressão “democraticamente constituídos”, nos revela a maneira preferencial que a própria lei manifesta para a escolha de seus membros. As eleições para representantes da sociedade civil no campo da Cultura não são desconhecidas. São práticas recorrentes para compor, por exemplo, o Conselho Nacional de Política Cultural. Talvez, como Conselho, a transformação desse colegiado, em relação à sociedade civil, pudesse incorporar a eleição como processo de escolha dessa representação imprescindível para a proteção do patrimônio cultural.

Rodrigo Vieira, Docente da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semiárido, Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Notas:


[1] Decreto n. 9.759/2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d9759.htm. [2] Medida Cautelar na ADI 6.121.


[3] Lei n. 378, de 13 de janeiro de 1937. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1930-1949/l0378.htm. Acresce-se o relevante papel atribuído ao Conselho pelo Decreto-Lei n.25/1937 no processo de tombamento.


[4] Sobre a natureza dos conselhos, ver: Cunha Filho, Francisco Humberto. Conselhos no vigente modelo constitucional do brasil: paradigma para a construção dos congêneres culturais. Tiempo de Gestión, v. 1, p. 9-24, 2023.



[6] Art. 2º do Decreto n. 11.670/2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11670.htm#art9.


[7] Art. 3º, inciso IV, do Decreto n. 9.963/2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9963.htm.


[8] Caput do art. 216 da CF/88.


[9] Maia, Tatyana de Amaral. Os Cardeais da Cultura: o Conselho federal de Cultura na ditadura civil-militar (1967-1975). São Paulo: Iluminuras, 2021.


[10] § 1º do art. 216 da CF/88.


[11] Art. 216-A, § 1º, inciso X, da CF/88.


[12] Decreto 11.670/2023, já referido.


[13] Anexo da Lei n. 12.343/2010, Cap. I, item 1.1.1. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12343.htm.


[14] Anexo da Lei n. 12.343/2010, Cap. V, item 5.4, já referida.


[15] Vide os editais de eleição para o CNPC, disponíveis em: http://cnpc.cultura.gov.br/editalcnpc20222025/.

128 visualizações0 comentário

Comentarios


bottom of page