Um herói sem rosto !
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Ricardo Oriá, Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Doutor em História da Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Consultor Legislativo da área de educação, cultura e desporto da Câmara dos Deputados (1994-2022). É membro titular do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural- IPHAN/MinC e sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). E-mail: jricardo.oria@gmail.com
"Não há regime político que não cultue seus heróis e promova seu panteão cívico"
(José Murilo de Carvalho). [1]

O ano de 2025 está repleto de feriados nacionais que caem em dias normais de trabalho. Um deles será comemorado daqui a seis dias e que, para a alegria de todos, resultará em um descanso prolongado de mais de quatro dias, por se seguir a outro feriado de cunho religioso. Estamos nos referindo, respectivamente, aos dias de Tiradentes e da Paixão de Cristo. O que esses feriados possuem em comum, mesmo um deles sendo feriado religioso e o outro de caráter civil?
Sabemos muito bem que feriados, datas cívicas e comemorativas são elementos constitutivos da memória e identidade nacionais. O dia 21 de abril evoca a morte de Joaquim José da Silva Xavier, em 1792, e que passou à história como "Tiradentes". Desde o final do século XIX, essa data passou a ser comemorada e tornou-se feriado nacional, até os dias de hoje.
No decorrer da História e no âmbito da produção historiográfica, a figura de Joaquim José da Silva Xavier foi apropriada de diferentes formas até se tornar o herói nacional por excelência. Inicialmente, Tiradentes foi visto como o grande traidor da Coroa Portuguesa, tendo recebido a pena máxima de enforcamento, por ser um dos líderes do movimento de libertação nacional que passou à História como “Inconfidência Mineira” (1789). Seus restos mortais foram jogados pelo caminho e sua cabeça espetada em praça pública de Vila Rica, onde hoje se encontra o monumento em sua homenagem.
Não se tem nenhuma representação iconográfica fidedigna de nosso “herói da Pátria”. Acredita-se, pelos relatos de época, que Tiradentes era um homem alto, grisalho, com barba bem-feita e bigodes aparados. Sua alcunha deriva do fato de que levava sempre consigo a tiracolo os ferrinhos de extrair dentes, um espelho e duas navalhas. É bem provável que durante sua execução, ele tivesse com cabelos e barba raspados, costume esse adotado nas prisões para se evitar a proliferação de piolhos.
No entanto, a representação de Tiradentes com barba é mais uma imagem canônica, criada pelo ideário republicano e que foi bastante reproduzida em livros didáticos, cadernos, estátuas, quadros, cédulas, moedas e selos. Tiradentes encarna a figura de um verdadeiro "Cristo Cívico" da nação brasileira. À semelhança de Jesus, Tiradentes sacrificou sua própria vida em prol da emancipação do país, imolando-se pela Pátria, tal como o Messias, que foi crucificado para a salvação dos homens.
O culto cívico a Tiradentes perpassa vários períodos da História. Durante a Primeira República, foi construído, em 1926, no Rio de Janeiro, o Monumento a Tiradentes, defronte ao Palácio homônimo, no local onde supostamente ele ficou preso e de lá saiu para ser executado na forca. Esse monumento, que possui quase cinco metros de altura, reforça, mais uma vez, o personagem como um “Cristo”: barbas longas, camisolão, corda ao pescoço, pulsos algemados e olhar que traduz, ao mesmo tempo, a dor e a altivez daquele que deu a sua própria vida em prol da libertação do Brasil do jugo português.
Na Era Vargas (1930-1945), a memória de Tiradentes foi novamente resgatada com a elevação da cidade de Ouro Preto em Monumento Nacional (1933). Por decreto presidencial de 1936, Getúlio Vargas determinou que os restos mortais dos inconfidentes, degredados para a África, fossem repatriados e depositados em Ouro Preto, em culto cívico nacional. Assim, foi inaugurado em 21 de abril de 1942, em lembrança aos 150 anos da decretação da sentença condenatória dos inconfidentes, o Museu da Inconfidência, com a instalação do Panteão, contendo 14 lápides funerárias, 13 ocupadas pelas ossadas dos inconfidentes repatriadas do continente africano e uma vazia, dedicada aos participantes do movimento cujos corpos não foram localizados.
Com essa medida legal, o governo Vargas não só reconhecia o valor simbólico do barroco mineiro na formação do patrimônio histórico nacional, mas, sobretudo, reforçava o imaginário republicano, uma vez que a antiga cidade de Vila Rica, hoje Ouro Preto, fora palco do primeiro movimento em prol de nossa emancipação e que propunha a implantação de uma República. Além do que a imagem do seu principal líder, Tiradentes, já consagrado pelos republicanos, era, mais uma vez, legitimado como mártir e herói nacional.
Durante o regime civil-militar (1964-1985), Tiradentes, que em vida era alferes (cargo de natureza militar), foi promovido à condição de “Patrono Cívico da Nação Brasileira”, através da Lei nº 4.897, de 1965. Além de declarar “Patrono Cívico do Brasil”, a lei em pauta fazia questão de que, no ano seguinte à promulgação dessa norma jurídica, o dia 21 de abril se revestisse de grandes festividades, a serem comemoradas, em todas as repartições públicas do País, mediante a colocação da efígie do homenageado. Adotou-se como modelo para a reprodução dessa efígie a estátua de Tiradentes, erigida defronte ao Palácio homônimo e que servira de sede à Câmara dos Deputados.
Ainda no período da ditadura, a figura de Tiradentes foi também apropriada por movimentos de esquerda armada, a exemplo do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e até mesmo durante o processo de abertura política. O escritor Lucas Figueiredo tem toda a razão ao afirmar que: “ao longo da História do Brasil, ao sabor das conveniências de cada momento, a figura de Joaquim da Silva Xavier foi moldada e remoldada [1], e então apropriada- sempre no papel de herói”.
Em 1989, por ocasião do centenário da Proclamação da República e dos duzentos anos da Conjuração Mineira, mais uma vez, a figura de Tiradentes foi acionada. Juntamente com Marechal Deodoro da Fonseca, ele tem seu nome inscrito no livro de aço dos heróis e heroínas da Pátria, que se encontra depositado no Panteão da Liberdade e da Democracia, na capital do país (Lei nº 7.919, de 1989).
Passados mais de duzentos anos e na falta de uma representação visual, permanece no imaginário coletivo nacional a figura de Tiradentes como “Cristo Cívico” da nação. O escritor Frei Betto, ao lembrar seus tempos de escola, retrata isso de forma precisa: “O ardor mineiro refletia-se na estampa de Tiradentes ao lado do quadro-negro. De perfil, cabelos e barba longos, a túnica de réu entreaberta ao peito, evocava Jesus Cristo que dormitava, de rosto pendido e braços abertos, no pequeno crucifixo ao centro da sala de aula”. [2]
*Ricardo Oriá, Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Doutor em História da Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Consultor Legislativo da área de educação, cultura e desporto da Câmara dos Deputados (1994-2022). É membro titular do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural- IPHAN/MinC e sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). E-mail: jricardo.oria@gmail.com
Notas:
[1] CARVALHO, José Murilo de. Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 50.
[2] FIGUEIREDO, Lucas. O Tiradentes: uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 384.
[3] BETTO, Frei. Alfabeto: autobiografia escolar. Memórias. São Paulo: Ática, 2002, p. 8
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