Ailton Krenak discursa na Assembleia Nacional
Constituinte em 1987. Foto: Reprodução/Cimi
No último dia 5 de janeiro, o Ministério da Cultura anunciou um acordo com a Secretaria de Patrimônio da União definindo um local para a instalação do Museu da Democracia, uma proposta lançada no Seminário Memória e Democracia, promovido pelo MinC em setembro de 2023. O local definido para a construção da sede do novo museu é a Esplanada dos Ministérios em Brasília, que tem sido, literalmente, um palco de batalhas entre grupos democráticos e antidemocráticos, especialmente após a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em dezembro de 2015.
A decisão da criação de um museu sobre a democracia é acertada. É simbólica a escolha do eixo monumental de Brasília, projeto modernista construído para ser a expressão concreta dos princípios democráticos. É ainda uma questão de defesa dos princípios republicanos e de cidadania, já que grupos de extrema-direita no Brasil e no mundo, em nome da liberdade de expressão e da liberdade política, têm ameaçado a própria democracia.
Os museus e o patrimônio cultural sempre cumpriram, nos estados liberais modernos, uma função de instrução cívica, inspirados pelo exemplo da França pós-revolucionária. Obras de arte, objetos, monumentos apresentados como testemunhos de um passado comum a todos os cidadãos, forjam um sentimento de identidade com a nação.
Curiosamente, no entanto, hoje existem poucos museus no mundo dedicados à democracia. Dentre eles, o Museum of Democracy, em Nova Iorque, nos Estados Unidos; o Museum of Australian Democracy, em Camberra, na Austrália; e o People’s History Museum,em Manchester, na Inglaterra. A versão brasileira de um museu como esses contará com seções sobre os conceitos de democracia e as liberdades sobre as quais se sustentam os regimes políticos e o funcionamento dos sistemas eleitorais brasileiros, os modos de votar ao longo da história, os partidos políticos, as transformações do perfil do eleitorado e as constituições brasileiras ao longo da história.
A cidade de Brasília foi construída por iniciativa do presidente Juscelino Kubitschek para ser a capital do Brasil nos anos de 1950, como símbolo da modernidade do país em um dos mais longos períodos de normalidade democrática de nossa história (1945-1964). O desenvolvimento material e urbano dos “50 anos em 5” de JK foi materializado na monumentalidade dos edifícios estatais. Suas rampas e vãos livres foram projetados para dar amplo acesso aos cidadãos. Não por acaso ocupa posição central, na Praça dos Três Poderes, entre o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto, como o fiel da balança entre o Judiciário e o Executivo. A cidade do eterno país do futuro (mesmo com um grande passado pela frente, como bem lembrou Millôr Fernandes) foi o primeiro conjunto urbano a ser declarado Patrimônio Mundial pela Unesco em 1987, quando o país se encaminhava para a redemocratização após mais de 20 longos de “anos de chumbo”.
Brasília também foi palco da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988, que contou com participações memoráveis de lideranças dos movimentos negros, como Abdias do Nascimento, e indígenas, como Aílton Krenak, e milhares de cidadãs e cidadãos que se engajaram na proposta de emendas de iniciativa popular. Na promulgação da “Constituição Cidadã”, o presidente da ANC, Ulysses Guimarães, afirmou em seu discurso histórico: “Temos ódio à ditadura, ódio e nojo”.
Os motivos? A perseguição, a prisão e o exílio de cidadãos brasileiros e, no limite, o fechamento do próprio Parlamento e o cerceamento dos direitos políticos dos representantes do povo democraticamente eleitos. Para que tal violência de Estado não seja esquecida, iniciativas como a patrimonialização e a transformação da sede do DOI-CODI em São Paulo em memorial estão em curso. Mas é preciso ir além. Para que as tradições autoritárias não se repitam é preciso que nós, brasileiros, enquanto sociedade, façamos uma reflexão sobre os direitos sociais conquistados e os valores republicanos que desejamos defender.
É aí que reside o poder simbólico de um museu. A ideia da criação do Museu da Democracia surgiu como resposta a uma questão contemporânea urgente: os ataques promovidos pela extrema-direita contra os regimes democráticos, seja pela via interna de desgaste e desmonte de suas instituições ou por ataques diretos, como a invasão do Capitólio insufladas pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, e sua versão brasileira promovida pelos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro no 8 de janeiro, após a sua derrota nas eleições de 2022. Para além da responsabilização e penalização dos responsáveis pela Justiça, é preciso reafirmar a defesa do Estado Democrático de Direito que foi alvo do ataque. É preciso fortalecer a memória da ainda frágil democracia brasileira para aprendermos com sua história. O Museu da Democracia pode desempenhar um importante papel de monumentalizar o esforço de cidadãs e cidadãos para a defesa de liberdades, a conquista de direitos e o exercício da participação social na política nacional.
Marcelo Cardoso de Paiva, Historiador formado pela FFLCH-USP, mestre e doutor em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP
Yussef D. S. Campos, Professor Adjunto da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás e permanente do Programa de Pós-graduação em História da mesma universidade
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