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É da cozinha que nasce a democracia: o poder de agir dos cidadãos diante de crises climáticas 


Imagem: Pixabay


Durante o atual período de crise climática global que estamos vivendo, diversas preocupações inerentes à nossa sobrevivência ocasionam cada vez mais que instituições e indivíduos reflitam sobre novas perspectivas e formas de viver em sociedade. E o tema alimentação, tanto na pandemia do Covid-19, como na inundação catastrófica ocorrida no início do mês no Estado do Rio Grande do Sul, surgiu no epicentro desses debates.  

 

Os impactos que essas crises vêm provocando resultam no fato de que a alimentação volta a ser pensada como um problema quantitativo e emergencial, já que uma crise multidimensional afeta diretamente todas as fases da cadeia alimentar – desde a produção à sua distribuição e consumo. Contudo, não bastaria aumentar os rendimentos da população para pôr fim à escassez ou converter a agricultura numa indústria altamente produtivista, como é a realidade atual no Brasil com o agronegócio e como ocorreu no período pós-segunda guerra mundial (FAO, 1955) [1]. Além da ideia de ampliar a produção, faz-se necessário buscar novos parâmetros articulados em conceitos mais democráticos e solidários, pois a extinção da fome não se dá pela quantidade de alimentos, mas pelo acesso à alimentação.  

 

Desde a década de 1980, no campo da alimentação, diversos movimentos sobre novas formas de produção, comercialização e consumo começaram a surgir e atrair a atenção de alguns pesquisadores [2]. Tais experiências diziam respeito a aspectos específicos da gestão dos sistemas alimentares locais: produção mais sustentável, educação alimentar, consumo, valorização da produção e economia local. Assim, em 1993, tivemos a fundação da Via Campesina [3], na Bélgica, que, representando pequenos e médios agricultores, apresentou a ideia de “soberania alimentar” e, a partir de um forte sentimento de unidade e solidariedade, iniciou a defesa de políticas agrícolas e agroalimentares mais sustentáveis. E, ainda, o movimento Slow Food [4], na Itália, fundado na cidade de Bra, tendo como tema a promoção do direito à alimentação como prazer e a defesa da biodiversidade e da soberania alimentar, lutando contra a padronização de sabores, a agricultura em massa e a manipulação genética. 

 

Nesse sentido, observamos um crescente na busca de novas perspectivas locais sobre a alimentação levando, em alguns casos, à construção de novos canais e processos alimentares. Isto é, diante dessas novas adversidades, brotam alternativas baseadas na participação, no coletivo e no estreitamento de laços sociais. Os atores territoriais se mobilizam visando uma organização participativa de coleta, preparação e doação de refeições, a partir de princípios solidários e democráticos.  

 

Existem inúmeros exemplos, mas o que gostaríamos de ressaltar aqui, e que foi muito utilizado na pandemia e agora nas enchentes no Sul do Brasil, é o caso das cozinhas solidárias. Na periferia de São Paulo, durante a crise pandêmica, inaugurou-se a primeira cozinha solidária no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e, após, na enchente no Vale do Taquari em 2023. E, agora, em Porto Alegre, o trabalho das organizações se repetiu. Trata-se da realização e distribuição de refeições gratuitas à população em situação de vulnerabilidade, produzidas em cozinhas coletivas geridas pelas próprias comunidades, resultando em espaços de identificação territorial e de organização popular.  

 

Hoje, são 47 iniciativas espalhadas por 13 estados brasileiros e no Distrito Federal [5], iniciativa que, inclusive, inspirou a criação da Lei n° 14.628/2023, regulamentada pelo Decreto n° 11.937/2024, que tem por objetivo estabelecer um programa de políticas públicas nesse sentido [6].  

 

Aliás, quando analisamos algumas políticas públicas que visam erradicar a fome no Brasil, nos deparamos com muitos movimentos sociais e grandes embates públicos que levaram à consolidação de programas de alimentação, como foi igualmente o caso da ampla campanha “Ação da cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, idealizada por Herbert de Souza, o Betinho, na década de 1990. Ou seja, mesmo após a institucionalização de garantias de direito, via Constituição Federal de 1988, ainda foram necessárias campanhas de solidariedade nacional e internacional e ações de intervenção civil em prol de um assunto de extrema urgência, a fome. 

 

Como ocorre hoje no Rio Grande do Sul, é evidente a importância da atuação direta das comunidades, seja nas grandes campanhas de arrecadação de alimentos ou na produção de refeições de cozinhas solidárias. São mecanismos assistenciais contingenciais que empurram o Estado a agir, resultando em políticas públicas e gestão pública, visto que é dever do Estado a garantia desses direitos, não somente o Direito Humano à Alimentação e à Segurança Alimentar (direito amplamente amparado na Constituição Federal de 1988) [7], mas também na busca de novas políticas públicas de amparo aos cidadãos que se encontram em meio a um período de adversidade ou fatalidade. 

 

Considerando que os atuais eventos e manifestações do clima já atingiram um novo patamar da crise ambiental, onde a questão da segurança alimentar ocupa uma preocupação especial, tanto na produção de alimentos, impactada pela tendência de escassez, como na acessibilidade para famílias de baixa renda, a criatividade e a união das comunidades são a base na promoção de soluções novas, partilhadas e o mais próximas possível das necessidades identificadas. Além de garantir novas perspectivas a velhas práticas, a participação coletiva e individual promove a emancipação e a cidadania. A construção de uma cultura comum, coletiva e democrática é a chave de novas soluções para novas crises que poderão vir de forma mais profunda e contundente.  

 

Quem tem fome, tem pressa! 

 

*Anita Mattes é doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbone, professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) 

 

Eloyse Davet, Doutoranda em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Universidade da Região de Joinville (Univille). Mestra em Patrimônio Cultural e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Univille na linha de Patrimônio, Memória e Linguagens. Graduada em História pela Universidade da Região de Joinville (Univille) 

 

Notas 

[1] La situation mondiale de l’alimentation et de l’agriculture. FAO, 1955. Disponível em: https://openknowledge.fao.org/server/api/core/bitstreams/65fe2af6-6943-4247-9454-99f9d62c8ac0/content.  


[2] Feenstra, G.W. Local Food Systems and Sustainable Communities. American Journal of Alternative Agriculture, 1997; Henderson, E. Rebuilding local food systems from the grassroots up. Monthly Review, vol. 50, 1998; LANG, T. Lang, T. Food security: Does it conflict with globalization. Rev. Development 4, 1996; e GIOVANELLI, G. Le politiche urbane del cibo tra sostenibilità e crisi. University Press, 2022.    



[4] Ver o site: https://www.slowfood.it.  




[7] SILVA, E. O.; AMPARO-SANTOS, L.; SOARES, M. D. Alimentação escolar e constituição de identidades dos escolares: da merenda para pobres ao direito à alimentação. Cadernos de Saúde Pública, v. 34, n. 4, p. 1-13, 2018. 

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